quarta-feira, 5 de março de 2014

A "Décima Primeira" Musa da América

Antiga resenha, publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais nos anos '80, que ainda mantém sua cândida singularidade. Da mesma forma, a mensagem de Violeta Parra ecoa na atualidade, como reverberação de uma consciência crítica universal que se recusa a calar diante da injustiça que ainda impera dentro e além de muitas fronteiras.
 

por
Maria A. Silva

Em 1917, o Chile ganhou uma de suas vozes mais atuantes, origem de uma das mais autênticas manifestações culturais hispano-americanas: Violeta Parra. A veia poética - também revelada por seu irmão Nicanor - emergiu aos doze anos de idade, nos primeiros acordes de sua guitarra. Simultaneamente preservadora e renovadora da tradição musical de seu país, Violeta Parra deixou inúmeras composições. Dentre as tentativas de compilação da obra da poetisa chilena, destacamos a antologia Violeta del Pueblo,[1] trabalho de Javier Martínez Reverte, publicado em 1976 pela Visor de Madri, "la primera aproximación singular a la obra de Violeta y a su sentido".[2]
 
Martínez Reverte procura situar a criação de Violeta Parra dentro da linha de tradição musical chilena por ele recolhida, que possui desenvolvimento especial no folclore, e a partir da qual a canção engendrou uma função de crítica política e denúncia social. A universalidade de seu canto, repositório das aspirações e exigências não só do povo chileno, mas também de todo o continente latino-americano, não anula o caráter individual, sofrido e angustiado que se faz sentir em muitas de suas composições. Martínez Reverte revela-nos aspectos inusitados do comportamento de Violeta, marcado, ao longo de sua existência, pela necessidade constante de grande dose de coragem e ousadia:
 
"Cuando cantaba en 'L'Escala' del barrio latino, junto con otros artistas luego encumbrados a la fama, como Paco Ibáñez, imponía al público y a sus amigos el deber del silencio, mientras ella cantava. Y no dudaba en arrojar una maraca a la cabeza de quien no respetaba la norma del silencio".[3]
 
Espírito inquieto e empreendedor, Violeta Parra buscava incessantemente caminhos de criação. Isso significava que, por exemplo, estando doente, seria realmente capaz de deixar sua casa sem cortinas e lençóis para convertê-los em telas nas quais pudesse pintar e bordar, como registra Martínez Reverte.
 
A antologia está dividida por grupos temáticos. O primeiro deles reúne as "Canciones Amorosas", dentre as quais as famosas "Volver a los 17" e "Gracias a la vida", composições derradeiras de Violeta, esta última impregnada de tom melancólico, também presente em "Run-Run se fue pa'l Norte". O ritmo canción e a interpretação de Violeta Parra[4] deixam entrever acentuado desgosto causado pelo afastamento de seu amante, o jovem suíço Gilbert Favre, que culmina com o suicídio da compositora em 1967. O destaque deste grupo fica por conta do huayno "Pupila de águila", gênero musical indígena em extinção, de ritmo marcado e acelerado, semelhante ao guillatum, e através do qual o tema ganha vitalidade:
 
"Ave que llega sin procedencia y no sabe dónde va/ es prisioneira en su proprio vuelo, ave mala será,/ ave maligna, siembra cizaña, bebe, calla y se va,/ cierra tu puente, cierra tu canto, tira la llave al mar./ Un pajarillo vino llorando, lo quise consolar,/ toqué sus ojos con mi pañuelo, pupila de águila.[5]
 
O segundo grupo compreende as "Canciones políticas". "La carta", "Me gustan los estudiantes" e "Los pueblos americanos" são as mais conhecidas. mas outros versos demonstram seu compromisso social mais autêntico. Em "Hace falta un guerrillero", Violeta evoca o nome do revolucionário Manuel Rodríguez, que surge novamente em "Un río de sangre", ao lado de nomes de outros libertários como Zapata, Luis Emilio Recabarren e Federico García Lorca, relembrado em tom de revolta:
 
"No pueden hallar consuelo/ las almas con tal hazaña,/ qué luto para la España,/ qué vergüenza en el planeta,/ de haber matado un poeta,/ nacido de sus entrañas." (p. 95)
 
"Al centro de la injusticia" revela sua preocupação com os problemas cruciais que afligem o povo chileno, numa linguagem direta e incisiva:
 
"Linda se ve la patria señor turista,/ pero no le han mostrado las callampitas.[6]/ Mientras gastan millones en un monumento,/ de hambre se muere gente que es un portento./ Mucho dinero en parques municipales/ y la miseria es grande en los hospitales./ Al medio de Alameda de las Delicias,/ Chile limita al centro de la injusticia." (p. 69-70)
 
Cabe destacar a composição na qual Violeta emprega todo o seu talento, através de um recurso satírico bem significativo: uma espécie de "língua do pê" que desde o próprio título - "Mazurquica modernica" -, "camufla" grotescamente a mensagem:
 
"Me han preguntádico muchas persónicas/ si peligrósicas para las másicas/ son las cancióncicas agitadóricas/ ay que pregúntica más infantílica,/ sólo un piñúflico la formulárica/ pa mis adéntricos yo comentárica." (p. 67)
 
"Yo canto la diferencia" resume seus objetivos e pode ser considerada sua arte poética:
 
"Yo canto a la chillaneja/ si tengo que decir algo/ y no tomo la guitarra/ por conseguir un aplauso./ Yo canto la diferencia/ que hay de lo certo y lo falso./ De lo contrario, no canto." (p. 84)
 
O terceiro grupo engloba o que Martínez Reverte denominou "Canciones de aire popular". Neste grupo ainda permanece a definição do caráter existencial de suas criações, ilustrada em "Cantores que reflexionan":
 
"Y su conciencia dijo al fin/ cántele al hombre en su dolor,/ en su miseria y su sudor/ y en su motivo de existir./ Hoy es su canto un asadón/ que le abre surcos al vivir,/ a la justicia en su raíz/ y a los raudales de su voz./ En su divina comprensión/ luces brotaban del cantor." (p. 120)
 
"El guillatum" parece ser a mais próxima da tradição folclórica, pois resgata a inocência indígena na descrição de um "rito de fertilidade" vinculado ao cultivo da terra, elemento de sobrevivência em seu grupo social:
 
"La lluvia que cae y vuelve a caer/ los indios la miran sin hallar qué hacer,/ se arrancan el pelo, se rompen los pies,/ porque las cosechas se van a perder./ Se juntan los indios en un corralón,/ con los instrumentos rompió una canción,/ la machi repite la palavra sol/ y el eco del campo le sube la voz./ El rey de los cielos muy bien escuchó,/ remonta los vientos para otra región,/ deshizo las nubes, después se acostó,/ los indios lo cubren con una oración." (p. 118)
 
"Los santos borrachos" se insere no mesmo tom satírico de "Mazurquica modernica"; neste caso, as "ánimas cristianas", "los aspirantes al cielo,/ haciendo cola en la puerta" deparam-se com a correria dos santos, que preparam a festa de comemoração do matrimônio de Cristo com sua Igreja. A ironia da caracterização faz com que "santos mundanos", gulosos, desordeiros e nada caridosos desfilem diante de nossos olhos, numa crítica muito bem humorada:
 
"Santa Filomena hizo ricos polos,/ armó Santa Juana una pastelera.// San Pedro perdió las llaves/ y partió a toda carrera,/ atropelló a un santo viejo/ y allí lo dejó en la tierra./ Al pobre San Justo lo tumbó en la arena/ y a San Sebastián le quebró una pierna.// San Pedro con San Francisco/ tuvieron sus diferencias,/ con preguntas y respuestas/ se agarraron de las mechas. [...]// San Santiago, enojado,/ del ver que d'el no se acuerdan,[7]/ mandó ensillar su caballo/ y echó sapos y culebras./ Santa Teresita hizo barredera,/ con el cucharón le dio en la sesera." (p. 113-114)
 
A quarta e última parte da antologia reúne as "Décimas", publicadas depois de sua morte. Martínez Reverte considera "prodigioso" este conjunto de composições em versos de caráter autobiográfico e de um lirismo repleto de ternura e humanidade que, em sua opinião, ainda não foi devidamente valorizado pelos estudiosos e críticos. Aproxima-o ao Martín Fierro, de José Hernández, pois vê nas "Décimas" não só semelhanças estruturais,[8] como também certo clamor pelo sofrimento e pela injustiça, presente principalmente em "Por ese tiempo el destino", dedicada ao ditador Ibáñez, "el león sanguinario".
 
Com sua antologia, Javier Martínez Reverte torna possível o acesso a uma parte significativa da obra de Violeta Parra, cujas criações são merecedoras de lugar especial nos trabalhos de pesquisa folclórica e literária.
 
Soror Juana Inés de la Cruz - a "Décima Musa" das Letras hispano-americanas - foi uma das primeiras vozes a conseguir quebrar o silêncio de um continente antagônico. Do século XVII até a época da poetisa e compositora chilena, multiplicaram-se as desavenças e intensificou-se a participação social por vias poéticas. O "Canto Libre", cultivado por seus filhos Ángel e Isabel Parra, por Víctor Jara, os Quilapayún e Inti-Illimani, teve em Violeta Parra sua Musa guerreira, a "Décima Primeira" de todo um continente.
 
"No pierdo las esperanzas/ de qu'esto tenga su arreglo,/ un día este pobre pueblo/ teng'una feliz mudanza:/ el toro sólo se amansa/ montándolo bien a pelo;/ no tengo ningún recelo/ de verle la pajarilla/ cuando se dé la tortilla/ la vuelta que tanto anhelo." ("La esperanza", p. 19-20)
 
 
Notas
 
[1] MARTÍNEZ REVERTE, Javier. Pról., sel., y notas. Violeta del pueblo. Madrid, Visor, 1976. Colección Visor de Poesía, volúmen LXX, 153 p.
 
[2] Ibidem, p. 69.
 
[3] Ibidem, p. 17.
 
[4] A RCA Victor lançou no mercado brasileiro o LP As últimas composições de Violeta Parra, que reúne algumas de suas mais representativas canções. Entre elas, encontram-se as aqui mencionadas.
 
[5] Ibidem, p. 47-48. As demais citações terão indicação de página.
 
[6] Casas de latão - bidonvilles - dos subúrbios pobres de Santiago (N. de Martínez Reverte).
 
[7] Alusão clara à cidade de Santiago, reificada em "Santiago, penando estás": "Santiago del ochocientos,/ para poderte mirar,/ tendré que ver los apuntes/ del archivo nacional,/ te derrumbaron el cuerpo/ y tu alma salió a rodar,/ Santiago, penando estás." (p. 74)
 
[8] Confiram-se a segunda estrofe de "Aquí empiezan mis quebrantos" e a última do segundo canto de Martín Fierro:
 
"Aquí principian mis penas,/ lo digo con gran tristeza,/ me sobrenombran 'maleza'/ porque parezco un espanto./ Si me acercaba yo un tanto/ miraban como centellas,/ diciendo que no soy bella/ ni p'remedio un poquito,/ la peste es un gran delito/ para quien tiene su huella." (p. 131)
 
"Ansí empezaron mis males/ lo mesmo que los de tantos,/ Si gustan... en otros cantos/ Les diré lo que he sufrido:/ Después que uno está... perdido/ No lo salvan ni los santos." (HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. Buenos Aires, Latinoamericana, 1960, p. 24)
 

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